Fumo, fumo preto, reboques, quase festivais,
boleias, pantufas, paisagens deslumbrantes, ombros espapaçados, empenos, noites
bem dormidas, autocarros, amigos, táxis que se conduzem sozinhos, hiperespaço,
balanços, um taxista peculiar, quase compras de carros, batatas fritas, dias de
sol, mulheres nuas e bikes, pois é, também houve bikes, uma ou duas pelo menos.
Nem sei por onde começar, desta fez acho que
vou fazê-lo pelo final, só para variar. O geo-tour foi dos melhores eventos em
que já participei, e olhem que já participei em mais de três seguramente, vá
lá, talvez dois, ver bikes na televisão talvez não conte. Mas foi bom, muito
bom mesmo. Acabei moído, mas satisfeito e de alma cheia e pelo que fui ouvindo
e vendo parece-me que esse foi um sentimento comum a todos os participantes.
E agora só para contrariar, vou voltar ao
início.
foto: Carla Dias
foto: Carla Dias
O parceiro.
Vou começar pelo parceiro.
Má escolha. Deixei-me levar pelo sentimento. Já sou amigo do Nuno há uns anos,
considero-o um verdadeiro amigo e sei que o contrário também é verdade, mas
falhei nos critérios. O primeiro critério (não discutível) para escolher o
parceiro de aventura foi o de arranjar alguém menos bonito que eu, atenção que
disse menos bonito e não mais feio. Colocou-se aqui o primeiro problema, qualquer
um daqueles que conheço preenchia o pressuposto. Segundo critério… acabei por
ficar só com o primeiro e escolhi o Nuno pelos motivos indicados anteriormente.
Continuo a dizer que foi uma má escolha, apenas por um pequeno pormenor,
esqueci-me do critério mais importante, escolher alguém que andasse menos que
eu para que pudesse apreciar tanto a paisagem como o sofrimento alheio. O Nuno
tem a capacidade de olhar para o plano de treino e achar que é fraco, vai daí
fá-lo em dose dupla. É com este tipo de gente que me meto. Não correu bem (para
o meu lado).
foto: Nuno Gomes
A festa.
O que estava programado é que a festa iria
começar na sexta à noite e só terminaria no domingo à noite. Com ou sem empeno
era assim que seria, ou quase.
Ficou decidido partirmos de Abrantes em
direcção à diversão. O plano estava em andamento e a festa também.
foto: Agnelo Quelhasfoto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
A viagem.
Decorridos os quilómetros iniciais, o carro,
a fim de salvaguardar o nosso descanso, bem como a nossa prestação resolveu que
não lhe apetecia ir passar o fim-de-semana fora. Mas foi, contrariado e
devagarinho, mas foi. A nuvem de fumo em que os outros condutores se viram
envolvidos era uma espécie de antecipação do que se passaria no dia seguinte,
mas com pó, afinal o Nuno tinha decidido que o segundo dia seria só para gerir
a vantagem.
Ficámos parados no cruzamento para
Alpedrinha onde nos íamos dirigir para o festival Aragens que se realizaria na
sexta e sábado. Como a prova só teria o seu início às 10 da manhã, havia tempo
para tudo. Havia, mas não houve. Entre contactos com a assistência em viagem lá
marcámos o nosso regresso para domingo. Já o carro regressaria mais cedo.
Acabámos por pedir ao Carlos de Leiria que
apesar de já estar deitado se disponibilizou a ir-nos buscar a Alpedrinha
comprometendo o seu descanso e quem sabe a sua prestação. O plano estava em
acção, não iríamos ao Aragens, mas pelo menos tentávamos desgastar os
adversários não os deixando dormir convenientemente. Desconfio que o Carlos se
deve ter arrependido amargamente de ter posto o telemóvel a carregar, ainda
assim chegou ao pé de nós de sorriso nos lábios como é habitual (apesar de
estar a chorar por dentro).
O ponto alto da noite deu-se com a chegada
do reboque. O abrir da porta veio acompanhado de um fatinho de treino daqueles
usados para treinar nada e de umas pantufinhas aos quadrados a combinar com
coisa nenhuma, a não ser talvez com o penteado do feliz usuário. O reboque
seguiu para um lado e nós para o outro.
E foi numa viatura que tinha o rádio ligado
aos piscas que chegámos ao Fundão.
Podemos sem receio afirmar que a viagem
tinha corrido bem. O festival também (ouvimos dizer).
o nosso chofer particular com o habitual sorriso. foto: Nuno Gomesfoto: Agnelo Quelhas
foto: Nuno Gomes
O dia S (sábado).
O despertar foi tranquilo. Foi com a mesma
tranquilidade que nos dirigimos para o pavilhão multiusos do Fundão onde se
daria a partida do geo-tour.
Após o levantamento dos dorsais, começamos a
encontrar caras conhecidas e a delinear a estratégia para a corrida (cada um a
sua, como convém numa dupla). A do Nuno consistia em seguir a fundo e a minha
em seguir um bocadinho menos a fundo (estávamos quase em sintonia). A minha
acabou por ser a vencedora, uma vez que o Nuno não se podia afastar de mim mais
de 30 segundos.
Depois do breefing preparámo-nos para a
partida. A mesma foi feita por handicaps. A Paula e o Leonel partiram no
primeiro grupo, quer dizer, só a Paula, o Leonel esqueceu-se. A Paula teve que
voltar para trás a chamá-lo.
Pouco depois fomos nós. O primeiro dia
levava-nos do Fundão até Barroca do Zêzere, numa extensão de 72 quilómetros num
sobe e desce constante tipo serrote com mais de 2000 de acumulado positivo, “a
walk in the park”, portanto.
Saímos do Fundão a bom ritmo atrás do Carlos,
que devido às poucas horas de sono seguia a fundo pelo Fundão “a fora” com os
olhos pesados sem reparar na setinha do gps. Pouco depois entrámos na terra em
caminhos rurais onde o verde predominava devido à intensa chuva da época com o
topo da Estrela branco como pano de fundo. O cenário estava montado e bem. Eu
entretanto esforçava-me por seguir o Nuno, mas ainda conseguia ver a paisagem.
Mais ou menos no quilómetro 20, ao desmontar para passar uma ponte apercebo-me
que a roda traseira fora do sítio estava presa e não rodava solta. Desconfio do
Carlos, com medo da nossa prestação e como vingança de o não termos deixado
dormir tudo o que queria.
Depois de resolvido o problema lá seguimos a
caminho da recuperação. A seguir ao reforço (que se encontrava logo antes dum
reboque que atirava o pessoal ao chão) começava a parte mais dura do percurso.
Um sobe e desce constante entremeado por alguns single tracks foi o menu
servido para o resto do dia, mas a melhor parte estava para vir. Entretanto eu
lá ia seguindo o Nuno fartinho de lhe olhar para a roda.
Mas a 3 ou 4 quilómetros do
final entrámos num cenário deslumbrante. Passámos umas dunas formadas pelas
escavações das minas da Panasqueira e logo depois um maravilhoso e rápido
single track que nos levava à meta.
Por ali ficámos a comer batatas fritas até o
autocarro nos levar a Silvares para a banhoca antes do jantar.
Não foi preciso perder tempo a delinear a
estratégia para o dia seguinte, porque o Nuno já a havia anunciado previamente
– gerir a vantagem e para quem podem perguntar? Isso não interessa, só gerir.
Ainda que fossemos os últimos não mudaríamos de estratégia.
foto: Agnelo Quelhasfoto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
O dia D (de gerir a vantagem).
A noite foi bem dormida. Acho que ainda não
estava completamente deitado e já tinha adormecido. O despertar foi cedo, ainda
de noite. Era preciso apanhar o autocarro do Fundão para a Barroca do Zêzere,
onde iríamos começar o segundo dia. Afinal as bikes estavam lá à nossa espera.
Nunca aquela associação terá guardado tanto dinheiro, à excepção da minha, que
já ninguém a quer, nem eu, mas não há outra e a pé custa mais.
Começámos às 8.30. Logo no início deu para
ver que o Nuno tem uma forma estranha de gerir vantagens. Ainda assim o início
foi muito divertido com muitos singles e algumas zonas técnicas bem ao meu
gosto. Desta vez a roda não ia a travar, mas consegui cair numa regueira
daquelas feitas pelo passar das outras bikes. Tive sorte que estavam lá umas
pedras que me ampararam a queda e pude prosseguir sem demoras. A vontade era
muita mas o corpo ainda moído do dia anterior teimava em convencer-me do
contrário. Cheguei de facto à conclusão que uma bike de alumínio com suspensão
de 80 é capaz de não ser o ideal para uma coisa destas, mas enquanto vou
esperando pela nova tem mesmo que ser assim. Mas a coisa ainda ia piorar.
Até Bogas do Meio, o local do reforço, a
coisa foi-se fazendo a bom ritmo, não fosse o Nuno a gerir a vantagem. Mais uma
vez a simpatia contagiante das pessoas da organização fazia-nos ficar de
sorriso na cara. Daí para a frente esperava-nos o melhor. Uma calçada de xisto
deixou-me as costas e o que sobrava dos ombros em papa. O Nuno continuava a gerir
a vantagem e desconfio que para gozar comigo, ia assobiando enquanto eu mal
conseguia respirar. A subida que se seguia era duplamente feia. Feia pela
inclinação que tinha e feia outra vez pelo piso que apresentava fruto da
passagem das máquinas florestais. A chegada lá acima foi penosa. Apeteceu-me
várias vezes atirar a bike para o fundo do barroco e ficar por ali. Não me
recordo de metade da subida, o cansaço apagou-a da minha mente, ou então era o
estado de alucinação em que seguia. Foi de olhos na roda na frente que cheguei
lá acima.
O Nuno conversava com o elemento que a
organização tinha colocado lá em cima para massacrar o pessoal, como se a
subida só por si não fosse suficiente. -Falta pouco mais de 10 quilómetros ,
daqui a 1 hora e meia a duas horas estão lá.-
Sendo que seria quase sempre a descer, algo
ali não batia certo, ou então era o meu cérebro a pregar partidas. Ainda
tirámos uma foto lá em cima onde aproveitei para fazer cara de gajo cheio de
força.
Arranquei primeiro que o Nuno. Seria a única
forma de seguir à sua frente. A descida até à aldeia do Açor foi rápida e
serviu para descansar as pernas e massacrar mais um bocadinho os ombros. Lá em
baixo seguimos por uma estrada de alcatrão quando ouvimos do outro lado do vale
o pessoal local a gritar a dizer que não era por ali. Nesta altura já não se
acha grande piada aos enganos. Já no caminho certo voltámos a ouvir as mesmas
pessoas a dizer o mesmo, deviam estar ali desde manhã a fazer serviço público.
Daí até ao fim o Nuno continuou a assobiar (este gajo é mau) e eu só para não
ir calado ia acompanhando a música com uma letra feita à base de impropérios,
mas que me pareceram bastante adequados à situação.
A chegada teria sido feita de sorriso nos
lábios, se tivesse havido força para isso.
Depois de 5 minutos a descansar encostado a
qualquer coisa que não me recordo em jeito de sem abrigo coitadinho, lá me
levantei e fui lavar a bike com o Nuno antes do banho e da bucha.
Ainda havia que tratar do
regresso a Abrantes, para nós e para as bikes. Depois de longa conversa com o
seguro (como é sabido são agentes facilitadores de situações complicadas)
decidiu-se por um regresso de táxi sendo que as bikes seguiriam com o Leonel e
a Paula até Abrantes.
foto: Carla Diasfoto: Agnelo Quelhas
foto: Nuno Gomes
foto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
foto: Carla Dias
A viagem de regresso.
Pois, isso foi outra aventura. Regressámos
de VW transporter, de um ano mais antigo que as nossas idades somadas. O
taxista, pessoa deveras simpática, tinha a capacidade de conduzir só com uma
mão e ainda era capaz de afinfar valentes guinadas quando o carro fugia para a
linha de segurança. A outra era necessária para fazer gestos que acompanhavam a
conversa. O conta-quilómetros não funcionava e estava parado nos 300 e tal mil.
A partir de determinada velocidade começava tudo a tremer, parecia que
estávamos a entrar no hiperespaço. Não fosse o facto de ir cheio de medo e
talvez tivesse adormecido com tal balanço. Ainda assim nas palavras do
proprietário, a carrinha estava em óptima forma e só comia um bocadinho de
óleo. O Nuno ainda ofereceu 2000 euros mas a proposta foi declinada. Ainda
disse ao Nuno para perder a cabeça e oferecer 2050 euros mas a resposta foi a
mesma. Ainda assim acho que o Nuno ofereceu 1900 euros a mais.
O geo-tour foi duro mas nunca senti a minha
integridade física em risco (não que o Nuno não tivesse tentado), já do
regresso de táxi, não posso dizer o mesmo.
Foi com o coração pequenino
mas com um grande sorriso que parámos à porta do Nuno. E como o mundo é
pequenino, ainda descobrimos que o pantufinhas que nos rebocou o carro era
filho do shô Jaquim, o taxista que nos levou e que acumulava o transporte de
pessoas com o de viaturas.foto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
foto: Agnelo Quelhas
foto: Carla Dias
Epílogo
Tudo está bem quando acaba bem. Foi um
fim-de-semana memorável, o BTT Gardunha está de parabéns pelo evento que organizou,
pela humildade demonstrada e pela vontade que querer agradar no que faz. O
percurso tem tanto de duro como de belo, principalmente o segundo dia. Na minha
opinião uma organização irrepreensível apesar de toda a logística envolvida e tudo
isto apenas por 35 euros. Talvez por tudo isso as inscrições tenham esgotado
tão depressa. Para 2015 estarei lá novamente, de certeza. Quanto às mulheres
nuas, de facto não houve, talvez o único ponto a rever pela organização.
Quanto ao meu parceiro, tenho que repensar a
escolha para o ano que vem, mas como o Nuno é um amigo dos bons, provavelmente
vou optar pelo mesmo critério e esquecer o que me fez passar este ano. Além do
mais é maior do que eu e não convém dizer mal.
Acabou por ser o colocar em dia um geo-raid
que por outros motivos obrigaram o Nuno a participar sozinho numa dupla de um.
Outras aventuras se seguirão certamente se
não falecer entretanto. Acho que manter-me afastado do Nuno pode ajudar.
Nos 5 empenos a jogar em casa vou guardar
uma ou duas surpresas para o Nuno, o Carlos e o Ricardo Estrela (pois, não me
esqueci da promessa da subidita extra).
Até lá.
foto: Nuno Gomes
foto: Carla Dias